“A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei, ou de pirata, ou jardineira
E tudo se acabar na quarta-feira.”
(A felicidade – Vinícius de Morais)
O carnaval deste ano foi singular, isto porque pude observar de maneira mais atenta, mais fascinada este acontecimento. Creio que, embora tenha participado como folião, me foi dada a possibilidade de em muitos momentos observar, como que por uma espécie de encanto o que aconteci, inclusive comigo. Muitas vezes fiz declarações esparsas sobre o que eu considero ser a natureza do carnaval, considerações estas que agora tentarei compilar e oferecer uma interpretação.
Nascido e criado na cidade do Rio de Janeiro a primeira vez que tive a oportunidade de passar o carnaval nesta cidade foi em 2007, ano em que, por motivos pessoais, não pude observar de maneira tão atenta esta grande festividade. Em 2008 pude confirmar aquilo que já há muito suspeitava: no estado do Rio de Janeiro é aqui na capital que o carnaval acontece de maneira mais genuína, é bem verdade que muitos cariocas saem daqui para curtir o carnaval em outro lugar, mas é aqui que o espírito do carnaval reside.
Defendo-me das críticas sobre a tempestividade do meu texto dizendo que não creio ser um problema falar do carnaval mesmo pós-carnaval. A nostalgia da quarta-feira de cinzas não me abate e pretendo levar ao fim e ao cabo a consolidação dos meus pensamentos. Vamos a eles.
Pode ser que alguns acreditem que se tratam apenas de quatro dias, mas na verdade o carnaval trata-se de um processo; enquanto processo tem vários fenômenos coligados que o permitem acontecer e influenciam no seu modo de objetivar-se, aqui falarei daqueles que saltam aos meus olhos.
O carnaval se inicia com a mudança do clima. O surgimento dos finais de semana de sol é o primeiro indício, talvez não temporalmente, do início do processo de carnavalização do Rio de Janeiro. Nestes, as praias enchem de moças e rapazes em busca da mudança de tonalidade que propícia uma nova consideração das emoções, o clima quente é a primeira manifestação da embriaguez que deverá tomar conta das pessoas no ápice do carnaval. O calor não só enche as praias, ele incita ao uso de roupas mais leves e coloridas, estas por sua vez afetam inicialmente a compreensão figural do mundo, influenciando,assim como a tonalidade da pele, o modo de considerar o mundo. Tais fenômenos que parecem meras banalidades são traços iniciais de embriaguez, de leveza na vida como nas roupas e de calor humano como nas ruas.
O carnaval se inicia com a mudança do clima. O surgimento dos finais de semana de sol é o primeiro indício, talvez não temporalmente, do início do processo de carnavalização do Rio de Janeiro. Nestes, as praias enchem de moças e rapazes em busca da mudança de tonalidade que propícia uma nova consideração das emoções, o clima quente é a primeira manifestação da embriaguez que deverá tomar conta das pessoas no ápice do carnaval. O calor não só enche as praias, ele incita ao uso de roupas mais leves e coloridas, estas por sua vez afetam inicialmente a compreensão figural do mundo, influenciando,assim como a tonalidade da pele, o modo de considerar o mundo. Tais fenômenos que parecem meras banalidades são traços iniciais de embriaguez, de leveza na vida como nas roupas e de calor humano como nas ruas.
Sim, aqui considero o fenômeno do carnaval não meramente como aqueles quatro dias que representam o ápice, a festa em si, mas como o processo que se inicia em outubro e caminha até o final de fevereiro quando enfim as águas de março fecham o verão e trazem de volta o mundo figural cotidiano.
Diferi o mundo figural cotidiano do mundo figural do sonho para dizer que em ambos não há realidade, mas que no primeiro há a sensação de realidade que o segundo pretende mitigar mas disto tratarei mais a frente. O que importa neste momento é perceber o quanto o clima, uma representação figurada, ou seja, que se dá por imagens, representa uma transformação no modo de considerar as coisas. Não podemos nos enganar, nem exagerar na consideração da influência do clima. Ela é leve e imperceptível, nem mesmo é capaz de subverter a compreensão do mundo, mas tão somente de preparar o início do caminho para que o fenômeno possa acontecer. Este primeiro fenômeno trata-se de um fenômeno coligado cuja importância para o início do processo é central, mas que não ilide a ocorrência do carnaval como vimos este ano, mas disto também devo falar mais a frente.
Um segundo momento constitutivo ocorre com a mudança da embriaguez cotidiana, o carnaval como tento compreendê-lo trata-se de uma catarse, o que não significa que não ocorra embriaguez no modo da não surpresa, da cotidianidade. Assim, a escolha do samba que ocorre em setembro/outubro bem como os ensaios de escolas posteriores são como atos preparatórios para o consolo metafísico total que será representado pelo carnaval. Destas escolhas depende certamente uma parcela do carnaval entendido como fenômeno total e que por isto comporta diversas objetivações simultâneas.
A primeira e mais luxuosa objetivação do carnaval trata-se do desfile das escolas de samba. Nesta o carnaval ainda não encontra o seu cerne total de maneira plena e acabada, ou melhor, tanto quanto é possível ao nosso tempo, mas esbarra nos problemas racionais, sociais, econômicos e políticos. As escolas hoje se encontram infestados de artistas ou carreiristas que retiram do fenômeno sua catarse e o incluem no rol dos problemas sociais de acesso a cultura e ao lazer. Contudo, ainda assim, tudo que o folião nesta objetivação quer é encontrar um meio de se divertir e mais uma vez ele redime este mundo figural cotidiano que invade o mundo figural do sonho ao libertar-se de sua prisão e conseguir encontrar o cerne do festejo. Falarei dos foliões mais a frente e podem-se incluir também os foliões deste modo de objetivação nas minhas considerações posteriores.
O luxo desta forma de carnaval é o que há de mais próximo da coisa em si do fenômeno. É o abandono ético, a consideração estética da vida, o traço fundamental que nos traz o desfile. Assim, me utilizo dos versos de Baudelaire para descrever do que se trata tal transformação: Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa, Beleza! Ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo! Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta De um infinito que amo e que jamais desvendo?
Sim, aqui todo o sagrado vira profano, por que só o profano é o sagrado. No desfile ocorre a manifestação estética da anarquia do mundo, do movimento. O que entra em cena não são carros e fantasias são militantes estéticos do eterno padecer, do movimento que rege nossa vida e nossa história! Assim, abre-se o guarda roupa pra contar sob a forma de música dramatizada a história do passado e em última instância, a história do sempre: o que se mostra na avenida é o verdadeiramente-existente, é o destruir-se de tudo que existe.
Ascese, culpa, dor, ficam para trás, tudo que há é este unificar-se esteticamente com o coração da natureza. Valho-me neste momento de uma música do cacique de ramos: “Deixe o desamor caciqueando na avenida”. É disto que se trata o carnaval, pela beleza se tematiza a dor e prorrompe a alegria de ser sempre de novo, de ser possível sempre de novo cantar, por que a dor primordial é também indestrutível. Assim, é possível deixar todo desespero de existir que se encontra como ator principal por que pelo belo justifica-se tudo.
A moralidade é, tanto quanto possível, relegada a um segundo plano, bom e mau se confundem, o pirata vira palhaço. Nada mais importa o que se canta a um só coro é o culto do belo. Este não conhece a moral, só conhece a vida que pulsa no coração do eterno e inegável movimento de todas as coisas.
Se disserem que é demasiado romântico meu ponto de vista e demasiado metafísico deverei redargüir que não se trata de romantismo, mas de sensações e observações. Não poderei, contudo, demonstrar ser o meu ponto de vista é verdadeiro, afinal, tal qual uma morte, olhar de frente o centro do palco, sobrever o que se encontra por trás do drama é algo que só é possível a olhos bem treinados, e descrever é algo que só é possível para alguns. Assim, se meu ponto de vista parece inverossímil pode ser que não se tenha visto completamente o que ocorre ou que também eu tenha sido enfeitiçado.
Por outro lado se me objetarem que as pessoas não pensam nestas coisas ao se metamorfosearem em foliões, deverei dizer que tão pouco o homem pensa em todas as implicações e motivos para o sexo antes de exercê-lo. E que é preciso estar iludido para agir, sim, é necessário um quinhão de fé para não ser paralisado pelo conhecimento. Ao se metamorfosearem em foliões as pessoas assumem uma nova forma, assim como uma nova identidade, não necessariamente nominal, mas necessariamente em termos de caráter.
Se na avenida se encontra este proto-fenômeno de desprendimento e encontro com o coração do Ser é nas ruas que encontramos o cerne do fenômeno. Ali pobres e ricos deixam-se levar ao som do coro das bacantes modernas. É no fenômeno da transformação não moral, mas do modo de aproximar-se que representa o fenômeno concreto. Neste momento, todos têm a ver com todos, as sensações são comuns e então se encontra aquele saber que despedaça a natureza, uma alegria primordial que vem do quebrantamento do existir.
Este é então o fenômeno da catarse, fenômeno este tão inexplicável quanto o movimento perpetrado pelo coração do mundo. Neste momento a individuação dá lugar a uma profunda sensação de êxtase e a volta instantânea ao quebrantamento, a individualidade, permite que como num passe de mágica tudo seja então como pode e deve ser, não se trata mais de concertar o mundo desconjuntado das coisas, mas de sentir o fundo das coisas, o eterno movimento.
Aquele mundo figural do sonho de que falei antes é só a dramatização, da qual nós somos os atores e os espectadores, o fundo do fenômeno se mostra no coro das bacantes modernas que vão às ruas para cantar sua alegria de ser profundamente triste! Sim, é contraditório, mas é a mostra de que o conhecimento do eterno devir aqui está esta contradição, é a maldição do padecer, do destruir, que é jogada por cima de nós, enfim cantamos a alegria de retornar a coração do movimento e vermos por fim que já não se trata de um fardo, mas de nós mesmos.
Como isto ocorre? De onde vem este fenômeno tão singular e tão contraditório? Será que falo somente de uma impressão estética? Não! Este fenômeno tem um fundo, um fundo não figural, do Mistério, do inexplicável e por isto admirável, é este fundo metafísico que inicia e transborda o fenômeno do desprendimento e volta a si, da materialização do gênio liberto da cultura e, por incrível que pareça, liberto pela própria cultura!
Aqui não sobrecai sobre as bacantes o peso do existir, não é mais o mundo figural cotidiano o real, mas o mundo figural do sonho; e vemos isto, pois tão logo unificamos com o Ser primordial das coisas, o eterno-padecer, Uno-primordial, centro de relações, tornamos a voltar a quebrantar em indivíduos e, por isto, somos metamorfoseados em bacantes, coreutas, objetivações perfeitas do coração do Ser que como num mundo de conto de fadas são capazes de sair de si e ver o que fazem, e ver que não são eles que fazem.
E a perfeita manifestação deste fenômeno encontra-se na música. Somente na música todo mundo figural pode ser deixado de lado, todo mundo figural aparece só como sonho do que a música é o fundo. O motivo real do carnaval é a música! Sim, a canção popular intui todo este movimento, especialmente o samba, de que posso falar com mais precisão por ter experimentado a sensação de unificação que ele produz.
Colho em favor desta interpretação do fenômeno as palavras de Nietzsche no aforismo 6 do Nascimento da Tragédia: “A canção popular, porém, se nos apresenta, antes de mais nada , como espelho musical do mundo, como melodia primigênia, que procura agora uma aparência onírica paralela e a exprime na poesia. A melodia é portanto o que há de primeiro e mais universal, podendo por isso suportar múltiplas objetivações, em múltiplos textos.”
Ora, quem poderá dizer que as batidas do samba não lembram as batidas do coração? Que não são hipnotizantes os sons da música popular exatamente pelo seu caráter de prosaico, cheio de nuances, cheio de alegria para falar das tristezas desta vida? Quem dirá que não é fácil deixar seu corpo em direção a um outro lugar mais próximo de todos e distante de tudo quanto há? Sim, quem poderá me dizer não sentir uma sensação metafísica inexplicável ao ouvir este tipo de música?
Qualquer um que me diga não sentir-se desta forma poderá objetar-me que tudo quanto falo é um ponto de vista pessoal do que ocorre no carnaval, e, contra estes, nada poderei objetar, salvo talvez que provavelmente não se sentem assim pela sua própria incapacidade de fazer parte deste coro uníssono que vai as ruas sem propósito algum exceto cantar e ver outros (irmãos de infortúnio), que vai as ruas a fim de cantar, cantar a vida. Mas a verdade é que talvez, alguns mais realistas que eu, tenham visões não demasiadamente utópicas sobre o tema, que me importa?
Desejo ainda, antes de dar por findo meu relato, falar da tristeza. Creio que sobre este ponto ainda é necessária alguma luz. Poderiam perguntar, como é possível uma alegria tão efusiva ser chamada de fruto de uma dor, uma tristeza primordial? Não seria um ponto de vista demasiado pessimista? Vejam bem, eu é que deveria fazer tal pergunta! Nada há de mais otimista do que minha interpretação sobre o tema!
O mundo figural cotidiano, aquele que consideramos o real, é o grande culpado pelo pessimismo, é ele que cria o medo da destruição, é ele o que embota nossas mentes e imaginações. A festa é o sinônimo de um duelo dos mundos figural do sonho e cotidiano que se vêem obrigados a conviver e é a alegria de se encontrar com o naturalismo do movimento que nos permite abandonar, por alguns instantes, aquele mundo de dor e desespero. Por meio do cantar a dor do mundo figural cotidiano é que é possível “esquecer-se da dor para ver a banda passar cantando coisas de amor”. Aqui o real é questionado enfim e se mostra diante de nossos olhos o verdadeiramente existente em sua dor de ter sido quebrantado, a ele cantamos nossa dor de sermos sempre separados dele sem nunca deixar de ser parte dele. O movimento assume então por uma vez as rédeas do processo e nos retira de nossa vida aparente para que possamos tocar com a ponta dos dedos a essências das coisas Assim, o que dramatizamos é a vida cotidiana enquanto o que sentimos é a unificação com movimento eterno de todas as coisas.
Não é a toa que esperamos por este momento de ver aquela dor primordial, tão necessária à compreensão de nossa dor e também não é a toa que ao deixarmos este momento, sublime e cômico, sentimos como que uma náusea um voltar ao corpo, como se durante todo o fenômeno estivéssemos possuídos, e de fato estávamos transformados em bacantes dos tempos modernos.
Caso tudo que foi dito até aqui não seja o suficiente para garantir a veracidade do que digo, tampouco eu poderei fazê-lo com outras palavras, então deixarei que a letra de Carlos Lyra faça a minha última tentativa: “Acabou o nosso carnaval/Ninguém ouve cantar canções/Ninguém passa mais brincando feliz/E nos corações, saudades e cinzas foi o que restou/Pelas ruas o que se vê/É uma gente que nem se vê/Que nem se sorri, se beija e se abraça/E sai caminhando, dançando e cantando cantigas de amor/E no entanto é preciso cantar/Mais que nunca é preciso cantar/É preciso cantar e alegrar a cidade/A tristeza que a gente tem/Qualquer dia vai se acabar, todos vão sorrir/Voltou a esperança, ao povo que dança/Contente da vida, feliz a cantar/Porque são tantas coisas azuis/Há tão grandes promessas de luz/Tanto amor para amar/De que a gente nem sabe/Quem me dera viver pra ver/E brincar outros carnavais/Com a beleza dos velhos carnavais/Que marchas tão lindas/E o povo cantando seu canto de paz."