Assim, de repente, não mais que de repente, ela se foi. Não houve acidente, foi puro acaso como uma mera brincadeira de criança. Ela se foi e o deixou na sarjeta, tirou sua vida e todo o sentido que poderia ter, pois, com ela sumiram também todos os significados, amigos, família e tudo o mais. Será que você, leitor, pode imaginar o que significa acordar perdido, sem norte, sem rumo, sem prumo? Será que pode, sequer de relance, entender?
No início seus amigos e familiares acharam que era só um gracejo, que era uma aventura, que, dada a sua idade, era normal querer algo mais da vida e, era até saudável, fazer de cada dia uma nova aventura. Contudo, logo ficou penoso e enfadonho ter que aguentar toda aquela falta de sentido, a perda dos significados que tanto lhe eram caros, de seus valores. Não restava outra saída senão abandoná-lo.
Então restou só, náufrago, à deriva, preso a um personagem. Tudo que lhe restou foi um personagem e, com ele, surgiu lépido inebriante, garboso, ele, o alcoolismo. Ora, que solução melhor para quem só tem em si a agonia de viver uma eterna representação? Pelo menos este orgulhoso companheiro permitia-lhe alternar os personagens para tantos quantos ele quisesse, ou melhor, tantos quantos sua imaginação pudesse lhe prover.
A imaginação, saiba caro leitor, difere fundamentalmente do entendimento por que este é produzido só pelos significados que podemos agregar enquanto aquela pode ser produzida apesar de qualquer significado imediato. Quero dizer a imaginação não precisa de qualquer outra coisa do que o próprio experimentar do mundo enquanto o entendimento precisa algo a mais do que isto é preciso compreender algo como sendo este algo, ou seja, é preciso que este algo signifique alguma coisa. Ahhh mas que inefável companheira passou a lhe ser útil, abrindo-lhe portas permitindo que fosse quem quisesse ser independente de qualquer coisa, sem vínculos.
Bom, o que importa, de fato, é que como um acidente ela se foi como um acidente ela voltou. Assim, o que um dia se desviou voltou a aviar-se, fétida, lúgubre, com o dedo em riste apontando para si. Sim, ela voltou provocando culpa, como se houvesse um ato de vontade que a fez se desviar. Sua memória, toda a possibilidade de sentido para a sua vida, abria-lhe de novo as portas não sem cobrar um preço.
Ao olhar no espelho não mais era capaz de ver aqueles personagens que antes lhe amoleciam a agonia do errar constante, mas sim as marcas e as rugas deixadas pelo envelhecimento causado pelo abuso do álcool. Ao olhar para o lado não havia mais companheira senão a solidão. Sua memória havia regressado, sim, como se nunca houvera partido, sim, mas tudo que ela trouxe de volta foi o sofrimento. Salvo pela possibilidade sempre radiante de cunhar novos significados para sua vida, se pensa que isto é pouco ou que não vale a pena tente ficar um dia sem a sua memória.