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terça-feira, 24 de maio de 2011

Uma história sobre a memória

Assim, de repente, não mais que de repente, ela se foi. Não houve acidente, foi puro acaso como uma mera brincadeira de criança. Ela se foi e o deixou na sarjeta, tirou sua vida e todo o sentido que poderia ter, pois, com ela sumiram também todos os significados, amigos, família e tudo o mais. Será que você, leitor, pode imaginar o que significa acordar perdido, sem norte, sem rumo, sem prumo? Será que pode, sequer de relance, entender?

No início seus amigos e familiares acharam que era só um gracejo, que era uma aventura, que, dada a sua idade, era normal querer algo mais da vida e, era até saudável, fazer de cada dia uma nova aventura. Contudo, logo ficou penoso e enfadonho ter que aguentar toda aquela falta de sentido, a perda dos significados que tanto lhe eram caros, de seus valores. Não restava outra saída senão abandoná-lo.

Então restou só, náufrago, à deriva, preso a um personagem. Tudo que lhe restou foi um personagem e, com ele, surgiu lépido inebriante, garboso, ele, o alcoolismo. Ora, que solução melhor para quem só tem em si a agonia de viver uma eterna representação? Pelo menos este orgulhoso companheiro permitia-lhe alternar os personagens para tantos quantos ele quisesse, ou melhor, tantos quantos sua imaginação pudesse lhe prover.

A imaginação, saiba caro leitor, difere fundamentalmente do entendimento por que este é produzido só pelos significados que podemos agregar enquanto aquela pode ser produzida apesar de qualquer significado imediato. Quero dizer a imaginação não precisa de qualquer outra coisa do que o próprio experimentar do mundo enquanto o entendimento precisa algo a mais do que isto é preciso compreender algo como sendo este algo, ou seja, é preciso que este algo signifique alguma coisa. Ahhh mas que inefável companheira passou a lhe ser útil, abrindo-lhe portas permitindo que fosse quem quisesse ser independente de qualquer coisa, sem vínculos.

Bom, o que importa, de fato, é que como um acidente ela se foi como um acidente ela voltou. Assim, o que um dia se desviou voltou a aviar-se, fétida, lúgubre, com o dedo em riste apontando para si. Sim, ela voltou provocando culpa, como se houvesse um ato de vontade que a fez se desviar. Sua memória, toda a possibilidade de sentido para a sua vida, abria-lhe de novo as portas não sem cobrar um preço.

Ao olhar no espelho não mais era capaz de ver aqueles personagens que antes lhe amoleciam a agonia do errar constante, mas sim as marcas e as rugas deixadas pelo envelhecimento causado pelo abuso do álcool. Ao olhar para o lado não havia mais companheira senão a solidão. Sua memória havia regressado, sim, como se nunca houvera partido, sim, mas tudo que ela trouxe de volta foi o sofrimento. Salvo pela possibilidade sempre radiante de cunhar novos significados para sua vida, se pensa que isto é pouco ou que não vale a pena tente ficar um dia sem a sua memória.

domingo, 8 de maio de 2011

O que falta a nosso tempo

Falta inocência, malignidade, egoísmo. Estas são as considerações de Nietzsche quais serão as nossas? O que falta a nosso tempo? Falta coragem, honestidade intelectual, filosofia. Falta-nos ser crianças e assumir, definitivamente, às rédeas de nosso destino. Falta convicção, o filósofo disse que não somos rãs pensantes, é exatamente isto que somos hoje! Rãs pensantes! Os problemas não nos interessam, ou só nos interessam. Já há muito esperamos pela redenção, mas tudo que vemos é a perda da capacidade de influênciar, é nossa identidade tornando-se cada vez mais ato-mística, não, não se trata de um erro. E mesmo não sendo um erro talvez seja exatamente esta mística este crer no sagrado da vida que falte a nós.

domingo, 18 de maio de 2008

O sol, a alma e o jugo

O mundo havia se tornado um caos. O sol invadia aquele ambiente desconstruído trazendo um rastro de luz à escuridão que pairava sobre aquele monte de caixas, seu calor e sua luz aqueciam o universo frio daquela sala. Joana permanecia ali, parada, fraca, com uma mão na porta, para não cair, e a outra na cintura, simbolizando sua decisão.

As vertigens tomavam seu corpo e se transmutavam em embriaguez, o sol que cortava a sala escura lembrava-lhe de sua própria alma. Quantas vezes ficara sozinha nesta casa? Tantas que ela se tornou sua melhor amiga e companheira. Os matizes de cores e formas daquele ambiente pareciam materializar os estados de alma de Joana, mas agora, aquela escuridão cortada pela luz e calor do sol lhe fazia entristecer.

Certamente não era fácil deixar pra trás a vida que abraçara ainda aos 19, a contra gosto de sua família, mas tinha que ir, pois ficar a destruiria. Assim, para que não houvesse nenhum afeto que lhe fizesse mudar de idéia, decidiu não discutir nem comunicar Carlos Alberto. Procurou frete e esperou que ele viajasse, era só um dia então teria que ser rápida e não poderia levar muita coisa, mas quem precisa de muita coisa pra iniciar uma nova vida?

Não imaginava que só o fato de deixar a casa lhe provocaria tais afetos, as lágrimas correram e a embriaguez se tornou mais forte. Que misto de afeto e estética incrível, a visão linda da invasão do sol lhe extasiava e, ainda assim, chorava copiosamente, seus pés não lhe obedeciam; se os tivesse movido teria caído, mas que importava, já havia caído num buraco negro sem volta.

Olhando aquele mundo escuro e aquelas estrelas encaixotadas, perguntava-se: “Quando foi o fim? Quando deixei de amá-lo?”. Não esperava respostas para esta pergunta, mas não se conformava de não entender porque estava convicta: Carlos Alberto era o mesmo. Sentia que era ela, era ela que não era mais a mesma, que não poderia mais suportar aquela vida. Não fora um homem mal, ela bem o sabia, mas o fato é que o amor passou.

Lembrou-se, de súbito, do dia em que completaram 10 anos do dia em que haviam se conhecido. Carlos Alberto prometeu chegar cedo para que tivessem um jantar romântico, mas não o fez. Ao chegar tirou bruscamente a roupa deixando a mostra seu membro já em riste, Joana tirou por um segundo os olhos do livro que lia e viu Carlos Alberto avançar por cima dela rasgando-lhe a roupa como um animal, sem dizer sequer uma palavra, Joana não o contrariou, abriu as pernas, discretamente ligou a tv e se manteve entretida com ela até que Carlos Alberto jorra-se seu sêmen por cima de seu corpo. O nojo tomou conta de si, foi correndo ao banheiro lavar-se, demorou uma hora e ao sair do banheiro deparou-se com um tímido “me desculpe, ter furado” de Carlos Alberto, virou pro lado e dormiu com nojo dele e de si.

Forçou-se para lembrar-se das coisas felizes, mas só memórias esdrúxulas como esta vinham a sua mente, recusava-se a acreditar que só tinha vivido momentos deprimentes, sabia que não era verdade, ainda assim... Desistiu entregou-se à vertigem e caiu, sentada, chorando. Era hora de ir, precisava se livrar da angústia!

Ao sair, embora soubesse que Carlos Alberto certamente saberia aonde ela estaria, decidiu não deixar bilhete, confiava que ele entendesse que não devia procurá-la. Amava-o? Não, amava a história de amor que viveram e se perdeu. E por isto é que se sentia triste, não imaginava deixá-lo. Mas já pensava nos dois como dois navios que num grande mar se cruzaram e puderam trilhar a mesma rota por algum período de tempo e que agora deveriam separar-se, quem sabe a maré não os reunisse de novo? Quem sabe não teriam ocasião de festejar mais uma vez, juntos, a vida?

quinta-feira, 24 de abril de 2008

A separação e a unificação

Carlos Alberto completou, hoje, 35 anos e exatas duas semanas que se separou de sua esposa Joana. Entrou em casa e como usual retirou o paletó, deixou sua pasta em cima da mesa. Não fossem os incontáveis e irritantes recados em sua secretária eletrônica sequer teria lembrado que hoje era seu aniversário.

Terminou de se despir e dirigiu-se ao banheiro. Durante o banho, como que de súbito, entendeu o motivo de sua angústia. Não era o aniversário. Era o silêncio de sua casa, duas semanas não tinham sido o suficiente para acostumar-se a achegar em casa e não ter ninguém. Decidiu sair.

Saiu do banho, enxugou-se, fez a barba e vestiu-se. Caminhou com passos lentos até a porta e hesitou, como se faz normalmente quando se tem a sensação de estar esquecendo algo. Não esquecia nada. Enganou-se para não admitir o que pensara. Enfrentar nossos sentimentos, admiti-los, encará-los como problemas é demasiado duro quando ainda estamos afeitos demais a eles, muitas vezes é melhor apagar a luz e não ver.

Deixou o apartamento com passos obstinados e lentos, como se carregasse sobre si um peso enorme. Seu semblante embora limpo era deplorável, suas roupas amassadas, denunciavam a dor amorosa e lhe diziam que, entre outras coisas, esta era uma das coisas de que Joana se encarregava. Precisava de uma empregada. Não era hora disto.

Caminhava atento observando o rosto das pessoas, entrou num transe, incapaz de pensar, parecia uma maquina, andava sem direção, sem rumo, ou talvez em busca de um rumo. Ao ver um rosto parecido com o de Joana seu transe teve um fim, lembrou-se de uma frase que havia lido, sem lembrar aonde, “o amor é uma torrente contínua”, sentia certa equivalência da frase com a multidão de pessoas que continuam andando ocupadas em suas vidas. “Quantos mais terão as mesmas agruras que eu?” perguntava-se, para logo em seguida responder “Muitos, não estou só”.

O amor é uma torrente contínua. E para onde se dirigiu a torrente de Carlos e Joana? Não saberia dizer. Eles eram daqueles casais que todos imaginam que nunca se separarão; Carlos sempre tranqüilo e Joana elétrica. Sim, a torrente se dispersou, o que era água tornou-se gelo. Mas por quê? Eis a pergunta que martelava na cabeça de Carlos.

Sem perceber chegou à praia, decidiu sentar e acender um cigarro. Levou-o a boca, e sentiu de repente certa tranqüilidade. O ato de fumar encerrava-se em si mesmo, tudo poderia acontecer, mas nada teria mais importância que aquele cigarro. Percebeu então que havia se deixado levar pela torrente contínua e, agora, que ela havia se extinguido poderia então pisar novamente no chão, sentir a terra com os pés descalços. Era como se tivesse adormecido num barco que passa por uma tempestade e quando acordou viu-se numa ilha paradisíaca, sem ter ainda acostumado a terra firme; pensou ter visto o chão flutuar.

Que contradição! Sentia-se desamparado, havia acostumado a sentir-se embalado naquelas ondas, e, ainda sim, sentia a vida mais real, mais pujante. Amava-a, é fato, mas sabia tão bem quanto ela que não tinham mais forças para seguir em frente. Sabia inclusive que a recíproca não era mais verdadeira e isto era um martírio. “Será que ela tem outro?”. Pensou várias vezes em ir atrás dela, mas ações deste tipo não eram de seu feitio. Se ele tivesse feito isto ela teria voltado, bem sabia, mas perguntava-se: “Por quanto tempo?”.

Este ritual de sentar e fumar um cigarro servia-lhe como meio de reencontro consigo. Uma unificação com o mundo, algo místico. Sentiu o tempo desfazer-se, passaram horas como se fossem minutos. Sentia-se novamente em casa, como se tivesse por um longo tempo deixado, a força, seu corpo; podia então retornar. Unificava de novo mente e corpo, não tinha expulsado a tristeza, tampouco tinha confiança para de novo pisar no chão. Não podia acreditar que aquela terra fofa era sua nova realidade.

Sim, o tempo perdeu-se na vertigem. Parecia mais inseguro do que antes, como se tivesse, junto com o tempo, se desfeito. Não era um novo homem, mas sim um abandonado ao caos, ao caos da vida sem Joana. Terra, caos, torrente, barco... Longe de ser o homem tranqüilo de sempre, Carlos Alberto era agora Ser, somente isto: Ser! Sentia-se como se fosse o mundo e seu eterno padecimento. Abandonou-se a esta sensação e nem percebeu que dormia. Acordou com uma mão no ombro...

domingo, 6 de abril de 2008

O beijo

Quem já teve a ocasião de vir neste espaço outras vezes deve saber que eu não costumo colocar textos retirados de outro lugar, salvo como citação de meus próprios textos. Contudo, hoje vou colocar aqui um trecho do livro "O passado" que eu gostei muito. Aproveito pra indicar o filme "O passado", sobre o qual escrevi ano passado no meu outro espaço, e o livro de onde tirei este excerto. Aí vai...

“Era esse estranho recrudescimento do amor, fruto, sem dúvida, mais da ilusão retrospectiva do que do próprio amor, o que explicava o transe extremo e meio desesperado em que Rímini e Sofía mergulhavam ao se reencontrar. Não se abraçavam como amantes, mas como vítimas, vítimas finalmente libertadas, e as palavras de amor que suspiravam entre beijos, quase inaudíveis, longe de aludir a um distanciamento fatal da vida cotidiana, pareciam antes celebrar o fim de uma tortura atroz, a suspensão de uma pena que os tinha mantido separados por uma eternidade.”