sábado, 11 de junho de 2011

Anônimo

image

Pedro Augusto da Silva saia bem cedo antes do sol raiar para trabalhar andava observando os primeiros raios de sol surgirem por entre as nuvens ainda azuladas do negrume da noite até o trem que pegava em uma estação longínqua com seus olhos cansados e seus pés velozes. Assim ele fez por 40 anos, assim ele fez mesmo no dia de sua morte.

Ao entrar no trem sua cara era indistinta de todos os outros trabalhadores que, como ele, enchiam aquela lotação até o ponto de perfazerem um corpo só onde não há individualidade identidade, nome civil, direito ou qualquer coisa do tipo. Ali só há o caos da completa indistinção, da falta de materialidade de qualquer existência.

Isto nunca foi motivo para sua infelicidade, ao contrário sentia orgulho de sua condição de trabalhador e homem honrado. Quantos conhecemos assim? Que indistintos, anônimos, passam pela vida sem fazer qualquer diferença? Que ninguém, exceto os seus, vai se importar com eles agora na sua hora da partida?

Esta é a condição de nosso tempo, da impotência, não parcial, mas total face a sua própria existência da impossibilidade de ser qualquer coisa senão um anônimo. Passamos, assim como Pedro Augusto da Silva, a maior parte do tempo numa condição de indistinção que não manifesta-se só no trem mas em tudo que fazemos. Nossas pessoalidade, nossa cordialidade, nossa sensibilidade foi tomada de assalto. Isto a tal ponto que queremos ser assim! Queremos o anonimato!

Ocorre que este anonimato é um desvio, a ilusão da solidão, da autorrealização do eu em si mesmo e na sua relação consigo mesmo. Isto por que assim como a paisagem nos influencia infundindo sentimentos, embora não saibamos ao certo, as caras, as roupas, os risos, também nos influenciam alterando de modo significativo nosso caminho de experiências vivenciais.

Pedro Augusto da Silva pode provar isto com seu sangue. Certo dia ao sair do trem havia uma comoção, um protesto, e os homens da lei confundiram ele com um dos organizadores de tal protesto realizando o ato da suprema covardia da distinção, atacaram-lhe com paus, balas de borracha, pontapés, socos, levando-o, um homem de quase 70 anos, à morte.

Ali ele pode sentir como era não ser um indistinto, como seria se durante toda sua vida tivesse feito diferença quem ele era. Seu anonimato havia sido sua maior proteção, a proteção de sua existência face a todo o horror e o medo que graça sobre os homens. O que ele não pode ver, pois já morto, foi que também não há honra no anonimato, no esconderijo ninguém pode ver seus valores e a influência deles é limitada. O que ele não pode ver foi que sua morte serviu para que milhares de homens decidissem deixar sua proteção vital e atirassem a loucura do viver, do viver digno e respeitável. O que ele não pode ver foi que ele, no seu fato sacrificial, fez de seu corpo o símbolo da luta eterna em que se enreda a cadeia do existir. Terá valido a pena caro leitor?

O anonimato é de fato uma proteção mas em sua guarda também abdicamos de parte de nosso ser, de uma parcela de nossos mundos da capacidade de transmitir e fazer protrair valores e sentimentos. O anonimato é fruto do medo e do cansaço de um tempo que clama por loucuras por deixar-se e por pessoas dispostas a todo ato de sacrifício pois seus atos serão a semente que poderá trazer um futuro melhor.

Uma última palavra. Cometer atos de sacrifício não é um fruto da coragem, isto bem demonstrou Pedro da Silva Pereira, mas sim da disposição alegre de espírito que é capaz de fazê-los sem medo, sem remorso, sem rancor. É um ato do espírito que já foi sempre tocado pelo esquecimento e que por isto é incapaz da dor. Será que ainda há espíritos assim?

Nenhum comentário: