quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O chaveiro

Uma vida de pequenos e lentos gestos, as chaves abrem as portas a cada girar. Giram uma passagem para um mundo novo, para o transe de uma vida nova e cheia de surpresas. Mas o quanto os pequenos gestos se envolvem neste processo que vai desde uma causa eficiente que cria as chaves, ou seja, a possibilidade de abrir as portas e o próprio abrir das portas? 
Aquele homem, que era recorrente, apareceu e com suas mãos talhou uma chave cheia de pequenos dentes com cuidado e carinho, pois estes são necessários para que as chaves abram portas, e entregou-lhe na mão. Tal gesto de passagem é o primeiro do processo em que se pode decidir, entre guardar aquele talismã ou utilizá-lo como meio para encaminhar-se numa direção ainda desconhecida. 
A face rígida e dura refletia a certeza daquele que precisa manter-se sempre concentrado nos pequenos gestos e dava demonstrações de quantos pequenos gestos continuam este processo, que se inicia com a condição para que seja possível exercer uma transformação. Por isto enrijeceu o rosto e continuo admirando aquele tesouro, ainda sem saber o que fazer. 
Apesar de recorrente as únicas coisas que conhecia dele era a face rígida e dura concentrada e cheia de marcas da vida, como aquelas pessoas que passam tanto tempo entretidas em revelar algo que se tornam também parte deste algo. O cenário era sempre desconhecido, um alerta, de que o uso do talismã seria também uma passagem em direção ao desconhecido. Quanta angústia pesava em seu coração ao pegar aquele fruto de pequenos gestos e saber que também, se assim o desejasse, deveria fazer pequenos gestos, lentos gestos.
Fazer lentos gestos em uma vida cambiante como a nossa não é algo fácil ou de somenos, é entretecer-se com algo superior à qualquer gesto impensado que cometemos com relances de raciocínio que nos levam a lugares que sequer sabemos que desejavámos ir. Não, neste caso a vida impunha-lhe uma gravidade que não lhe permitiria avançar sem enfiar lentamente, refletidamente, e girar ainda com todo cuidado. Fazer diferente disto poderia significar quebrar a chave, perder o talismã e com ele a chance de passar ao outro lado.
Enfiou a chave na porta ainda sem saber se realmente gostaria de deixar este quarto e seguir em direção a um novo ambiente, à uma nova vida, mas com a disposição e a coragem de se lançar. Viu então o homem de feições rígidas parado à seu lado como se a admoestasse dos perigos da vida, dos perigos que só podem ser anunciados em lentos gestos; mas não desistiu.
Ao girar a chave, acordou sobressaltada, sem sequer ter a oportunidade de ver o que lhe esperava. Arfava como se tivesse perdido todo o ar, como se por um segundo tivesse corrido um risco de vida. Como se um segredo estivesse para ser revelado, um segredo que nunca era para ser visto. Agradeceu ter acordado, mesmo estando frustrada, gostaria de ver o que havia por trás da porta. Seu marido como sempre deitou-lhe a cabeça nos ombros e consolou-lhe e Joana começou a chorar, como criança que perde um brinquedo.

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