sábado, 31 de dezembro de 2011

A amargura

Interessante observar como os ambientes carregam, materialmente, nossos estados de espírito. Foi com este pensamento que Carlos, um ano após a morte de sua mulher, se entendeu amargurado. Aquele ambiente ofendido, minimalista, com simplesmente uma mesa, um quadro abstrato com cores inexplicáveis e uma janela minúscula que se defrontava com um prédio, um pulgueíro. 
A carreira de cocaína encontrava-se sobre a mesa, que tinha um tampo de vidro, longa, imponente esperando a catárse de seu dono para liberá-lo da amargura, transferi-lo para um lugar onde aquele ambiente desesperador, minúsculo e doentio como a alma de Carlos poderia se expandir e esquecer de toda a dor que havia lhe provocado a passagem pela soleira da porta da vida que o levara até aquela ventura.
Coisas espalhadas pelo chão, sujeira nas paredes, guimbas e cinzas de cigarros caidas no sofá já carcomido pela brasa que havia se apagado, um verdadeiro caos, um lugar onde não existia ordem. Mesmo o chão do apartamento rídiculo não se encontrava em baixo, mas como poderia? Na verdade, devo dizer, aquele apartamento sequer tinha chão tal era o estado de espírito de Carlos. Não, também não havia ali qualquer parede ou esteio e, por isto, a cocaína esperava pacientemente para retirá-lo daquele transe.
Ahhh como os ambientes refletem nossos espíritos. Faziam três meses que havia se mudado para aquele lugar, não, não se tratava de falta de dinheiro ou coisa do tipo. Se perguntasse à Carlos tão pouco ele poderia lhe explicar por que havia escolhido aquele lugar ermo, umido, fétido para morar. Mas, leitor, se me deres a honra talvez eu possa oferecer-lhe uma explicação: tratava-se de um lugar em que sua alma sentia-se refletida.
A carreira de cocaína era a única coisa que tinha sentido naquele ambiente e, também, na compleição espiritual de Carlos. A morte de sua mulher tornara sua vida sem sentido, assim como seu apartamento. Talvez seja o próprio desejo da punição, talvez ele se culpasse pela morte de sua mulher, mas como não tinha chão jazia parado olhando a carreira de cocaína e todo o sentido que só ela podia lhe oferecer naquele momento.
Os ambientes refletem, materialmente, a realidade interna do espírito, assim, percebam, toda a descrição do ambiente é a descrição do estado de espírito de Carlos. Sua amargura não poderia nunca ser descrita em palavras mas para os que sabem ler o mundo a vida material poderá desvelar algo sobre o que encontra-se preso em nossas percepções iterativas que são indizíveis.

Um comentário:

Aleska Lemos disse...

Sei bem como é estar um lixo por dentro e o ambiente te acompanhar rsss, mas o importante é renovar as forças pra continuar de pé, e tomar as porradas da vida com honra. ^_^ bjins e feliz ano novo!